Comparamos
com o martírio de Sacco e Vanzetti, porque os dois perseguidores
togados de Cesare Battisti foram igual e absurdamente tendenciosos,
alinhando-se, até o mais ínfimo detalhe, com o pleito italiano.
A
execução destes imigrantes anarquistas em 1927 teve, como pretexto,
homicídios que as autoridades estadunidenses sabiam terem sido cometidos
por criminosos sem envolvimento político; e como verdadeiro motivo, a
intimidação dos agrupamentos revolucionários.
Oficialmente
inocentados meio século depois, foram, portanto, assassinados por
linchadores travestidos de julgadores -- como Battisti, por muito pouco,
escapou de ser.
O
paralelo mais apropriado, contudo, talvez não seja histórico, e sim
literário: é com a via crucis de Joseph K. Com a diferença de que
Battisti acabou sendo salvo por uma corrente de bons brasileiros e uma
extraordinária estrangeira.
A exemplo do personagem principal de O Processo,
Battisti repentinamente se viu em meio a um pesadelo do qual não
conseguia acordar, sob acusações despropositadas e sem encontrar nenhuma
autoridade que levasse em conta seus protestos e provas de inocência.
Mais kafkiano, impossível.
Daí tanto perguntar, no seu livro Minha fuga sem fim, em entrevistas e mensagens: "Por que eu?".
TRADIÇÃO DE FAMÍLIA
Neto, filho e irmão mais novo de comunistas, engajou-se naturalmente na Juventude do PCI e, aos 13 anos, já participava dos protestos estudantis que marcaram o 1968 europeu.
Depois,
no cenário radicalizado do pós-1968, o ardor da idade, também
naturalmente, o foi conduzindo cada vez mais para a esquerda: do PCI à Lotta Continua, desta à Autonomia Operária, até desembocar no Proletários Armados para o Comunismo, pequena organização regional com cerca de 60 integrantes.
Participou de assaltos para sustentar o movimento -- as expropriações de capitalistas
-- e não nega. Mas, assustado com a escalada de violência desatinada --
cujo ápice foi a execução do sequestrado premiê Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas -- desligou-se em 1978, logo após o primeiro assassinato reivindicado por um núcleo dos PAC, do qual só tomou conhecimento a posteriori, recebendo-o com indignação.
Já era um mero foragido sem partido quando os PAC vitimaram outras três pessoas, no ano seguinte.
Detido, foi condenado em 1981 pelo
que realmente fez (participação em grupo armado, assalto e receptação de
armas), mas a uma pena rigorosa demais (12 anos), característica dos anos de chumbo na Itália, quando se admitia até a permanência de um suspeito em prisão PREVENTIVA por MAIS DE 10 ANOS!!!
Resgatado
em outubro de 1981, por uma operação comandada pelo líder dos PAC,
Pietro Mutti, abandonou a Itália, a luta armada e a própria participação
política, ocultando-se na França, depois no México, onde iniciou sua
carreira literária.
Aceitando a oferta do presidente François Mitterrand --
abrigo permanente para os perseguidos políticos italianos que se
comprometessem a não desenvolver atividades revolucionárias em solo
francês --, levava existência pacata e laboriosa há 14 anos, quando, em
2004, a Itália o escolheu como alvo.
Tinha sido um personagem secundário e obscuro nos anos de chumbo,
quando cerca de 600 grupos e grupúsculos de ultraesquerda se
constituíram na Itália. O fenômeno ganhou maiores proporções porque
muitos militantes sinceros de esquerda foram levados ao desespero pela traição histórica
do PCI, que tornou a revolução inviável num horizonte visível ao
mancomunar-se com a reacionária, corrupta e mafiosa Democracia Cristã.
Destes 600, um terço esteve envolvido em ações armadas.
"POR QUE EU?"
Nem
os PAC tinham posição de destaque na ultraesquerda, nem Battisti era
personagem destacado dos PAC. Foi apenas a válvula de escape de que o delator premiado Pietro Mutti e outros arrependidos,
em depoimentos escandalosamente orquestrados, serviram-se para obter
reduções de pena: estava a salvo no exterior, então poderiam descarregar
sobre ele, sem dano, as próprias culpas.
Num
tribunal que só faltou ser presidido por Tomás de Torquemada, Battisti
acabou sendo novamente julgado na Itália e condenado à prisão perpétua
em 1987.
A
sentença se lastreou unicamente no depoimento desses prisioneiros que
aspiravam a obter favores da Justiça italiana -- cujas grotescas
mentiras se evidenciaram, p. ex., na atribuição da autoria direta
de dois homicídios quase simultâneos a Battisti, tendo a acusação de
ser reescrita quando se percebeu a impossibilidade material de ele estar
de corpo presente em ambas as cidades.
Depois, provou-se de forma cabal que Battisti não só fora representado por advogados hostis (pois defendiam os arrependidos
cujos interesses conflitavam com os dele), como também falsários (pois
forjaram as procurações que os davam como seus patronos).
Battisti escapara das garras da Justiça italiana, então valia tudo contra ele. Mas, ainda, como vilão menor.
Passou a ser encarado como um vilão maior quando alcançou o sucesso literário. Tinha muito a revelar sobre o macartismo à italiana dos anos de chumbo, tantas vezes denunciado pela Anistia Internacional e outros defensores dos direitos humanos.
Foi
aí, em 2004, que a Itália direcionou suas baterias contra Battisti,
investindo pesado em persuasões e pressões para que a França desonrasse a
palavra empenhada por um presidente da República. Tudo isto facilitado
pela voga direitista na Europa e pela histeria insuflada ad nauseam a partir do atentado contra o WTC.
Ao
mesmo tempo que concedia a extradição antes negada, a França, por meio
do seu serviço secreto, facilitou a evasão de Battisti. A habitual
duplicidade francesa.
VÍTIMA DE DOIS SEQUESTROS. NO BRASIL
E
o pesadelo se transferiu para o Brasil, onde o escritor teve a
infelicidade de encontrar, no STF, dois inquisidores dispostos a tudo
para entregarem o troféu a Silvio Berlusconi.
Preso
em março/2007, seu caso deveria ter sido encerrado em janeiro/2009,
quando o então ministro da Justiça Tarso Genro lhe concedeu refúgio.
Mas, ao contrário do que estabelecia a Lei do Refúgio, bem como da jurisprudência consolidada em episódios anteriores, o relator Cezar Peluso manteve Battisti sequestrado, na esperança de convencer o STF a revogar (na prática) a Lei e jogar no lixo a jurisprudência.
Apostando numa hipótese
coerente com suas convicções pessoais (conservadoras, medievalistas e
reacionárias), Peluso manteve encarcerado quem deveria libertar.
Ele
e o então presidente Gilmar Mendes atraíram mais três ministros para
sua aventura que, em última análise, visava erigir o Supremo em
alternativa ao Poder Executivo, esvaziando-o ao assumir suas
prerrogativas inerentes. A criminalização dos movimentos sociais também
fazia, obviamente, parte do pacote.
Foram
juridicamente aberrantes as duas primeiras votações, em que o STF, por
5x4, derrubou uma decisão legítima do ministro da Justiça e autorizou a
extradição de um condenado por delitos políticos, ao arrepio das leis e
tradições brasileiras.
Como na nossa ditadura militar, delitos políticos foram falciosamente metamorfoseados em crimes comuns -- a despeito da sentença italiana, dezenas de vezes, imputar a Battisti a subversão contra o Estado italiano e enquadrá-lo numa lei instituída exatamente para combater tal subversão!
A blitzkrieg direitista foi detida na terceira votação, quando Peluso e Mendes tentavam automatizar a extradição, cassando também uma prerrogativa do presidente da República, condutor das relações internacionais do Brasil.
Contra
este acinte à Constituição insurgiu-se um ministro legalista, Carlos
Ayres Britto. Também por 5x4, ficou definido que a decisão final
continuava sendo do presidente da República, como sempre foi.
Sabendo
que Luiz Inácio Lula da Silva não cederia às afrontosas pressões
italianas, o premiê Silvio Berlusconi já se conformava com a derrota em
fevereiro de 2010, pedindo apenas que a pílula fosse dourada para não o
deixar muito mal com o eleitorado do seu país.
Mesmo
assim, quando Lula encerrou de vez o caso, Peluso apostou numa nova
tentativa de virada de mesa. Ao invés de libertar Battisti no próprio
dia 31/12/2010, que era o que lhe restava fazer segundo o ministro Marco
Aurélio de Mello e o grande jurista Dalmo de Abreu Dallari, manteve-o,
ainda, sequestrado.
E o sequestro, desta vez, saltou aos olhos e clamou aos céus. Só não viu quem não quis.
Com
o STF decidindo, por sonoros 6x3 (só Ellen Gracie embarcou na canoa
furada de Peluso e Mendes), que não havia mais motivo nenhum para o
processo prosseguir nem para Battisti ser mantido preso, como fica a
situação de quem cerceou arbitrariamente sua liberdade por cinco meses e
oito dias?
Torno a perguntar: quem julga o presidente da mais alta Corte?
UM IMPERADOR EM PARAFUSO
Além do governo neofascista de Berlusconi, que usou todo o peso de um
país do 1º mundo na tentativa de arrancar Battisti do Brasil; da
cabeça-de-ponte no Supremo e do previsível engajamento dos reacionários
brasileiros na cruzada italiana (vide a arguição da
inconstitucionalidade do parecer da Advocacia Geral da União, por parte
do DEM), uma menção especial cabe à grande imprensa brasileira em geral
e a Mino Carta em particular.
Eles protagonizaram uma das páginas mais vergonhosas de nosso jornalismo em todos os tempos, com uma satanização sem limites, omitindo informações importantes, maximizando insignificâncias, não abrindo espaço para o outro lado, cerceando o direito de resposta, manipulando, mentindo, pressionando, picareteando.
Nos momentos mais cruciais do caso, tratavam Battisti como terrorista, o que nem a discricionária Justiça italiana dos anos de chumbo ousara. Tudo fizeram para que um ex-militante inativo há três décadas fosse confundido com um Bin-Laden da vida.
Eles protagonizaram uma das páginas mais vergonhosas de nosso jornalismo em todos os tempos, com uma satanização sem limites, omitindo informações importantes, maximizando insignificâncias, não abrindo espaço para o outro lado, cerceando o direito de resposta, manipulando, mentindo, pressionando, picareteando.
Nos momentos mais cruciais do caso, tratavam Battisti como terrorista, o que nem a discricionária Justiça italiana dos anos de chumbo ousara. Tudo fizeram para que um ex-militante inativo há três décadas fosse confundido com um Bin-Laden da vida.
Quanto
a Mino Carta, sem jamais admitir que sua hostilidade a Battisti se
devia a ser fanático adepto do PCI e feroz inimigo dos que contestaram o
PCI, transformou sua revista num panfleto de péssima qualidade,
multiplicando as matérias rancorosas contra Battisti de forma tão
obsessiva que acabou sendo rejeitado até pelos leitores do seu blogue.
Aí, como o imperador que supõe ser, escafedeu-se do próprio blogue...
Finalmente,
se a jornada kafkiana de Battisti chegou a bom termo, isto em muito se
deve ao espírito de Justiça e à faina incansável de Fred Vargas, Carlos
Lungarzo e Eduardo Suplicy; aos artigos magistrais de Dalmo Dallari; ao
abnegado trabalho de divulgação desenvolvido por Rui Martins na fase em
que poucos se interessavam pelo assunto; e à dedicação de uma militância
jovem e apaixonada, que vestiu a camisa e deu o sangue pela causa.
Seria
impossível lembrar e citar todos; nem isto é tão importante quando se
luta por ideais. Nossa verdadeira recompensa é saber que ajudamos a
impedir que este episódio terminasse como o de Olga Benário e de Sacco e
Vanzetti.
Por
mais difícil que se apresente e por mais poderosos que sejam os
inimigos enfrentados, nenhuma luta está perdida na véspera. Esta é a
lição que fica. (texto publicado em 9/6/2011 no blogue Náufrago da Utopia)
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