Fui ativista estudantil (1967/68). Militante clandestino (1969/70). Preso político (1970/71). Tenho travado o bom combate, lutando por um Brasil mais justo, defendendo os direitos humanos, combatendo o autoritarismo.

Sou jornalista desde 1972. Crítico de música e de cinema. Cronista. Poeta. Escritor. Blogueiro.

Tentei e não consegui eleger-me vereador em São Paulo. Mas, orgulho-me de ter feito uma campanha fiel aos objetivos nortearam toda a minha vida adulta: a construção de uma sociedade igualitária e livre, tendo como prioridades máximas o bem comum e a felicidade dos seres humanos.

Em que a exploração do homem pelo homem seja substituída pela cooperação solidária do homem com os outros homens. Em que sejam finalmente concretizados os ideais mais generosos e nobres que a humanidade vem acalentando através dos tempos: justiça social e liberdade.

terça-feira, 31 de julho de 2012

UM MITO QUE CULTUO: 'CHE PUEBLO'

“El nombre del hombre muerto 
ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente, 
antes que o dia arrebente
El nombre del hombre muerto, 
antes que a definitiva noite 
se espalhe em Latinoamérica
El nombre del hombre es Pueblo, 
el nombre del hombre es Pueblo”
(Capinan, Gil e Torquato)

Che - o argentino, de Steven Soderbergh, consegue um prodígio, em termos de grandes produções estadunidenses enfocando personagens revolucionários: é um filme honesto.

Claro que, precavendo-se contra as inevitáveis críticas dos direitistas, Soderbergh e o roteirista Peter Buchman evitaram manifestar simpatia ostensiva pela causa revolucionária, limitando-se a colocar na tela os episódios narrados nos diários de Che Guevara.

Então, os aspectos políticos, como o relacionamento entre a guerrilha e a oposição desarmada, são tratados de forma muito superficial, enquanto as cenas de batalhas tomam tempo demais do filme.

Um cineasta   do ramo, como Costa-Gravas, certamente aprofundaria mais os personagens e situações, ao invés de ficar no meramente descritivo. Só que Hollywood jamais bancaria um filme sobre Guevara que tivesse Costa-Gravas como diretor...

Justiça seja feita: o atual Che é extremamente mais digno do que o Che! de 1969, dirigido por Richard Fleischer, com Omar Shariff no papel principal. Caricaturas e preconceitos desta vez ficaram de fora. A guerra fria acabou, felizmente.

Chamou-me a atenção o tratamento respeitoso que Fidel Castro (interpretado pelo bom ator mexicano Demián Bichir) recebe. Ele é mostrado como líder inconteste da revolução: ao mesmo tempo o visionário que apostou numa possibilidade remotíssima de vitória, o carismático que soube contagiar os outros com seu sonho e o pragmático que tomou quase sempre as decisões corretas ao longo da campanha.

Benicio Del Toro, obviamente, é quem sustenta o filme.

A opção foi a de abarcar, nesta primeira parte do épico -- há uma segunda, Che - A Guerrilha  --, o período que vai do primeiro encontro entre Che e Fidel (1955) até a derrubada do ditador Fulgencio Batista (1959); afora isto, só existe um pequeno salto para o futuro, o pronunciamento de Guevara na ONU (1964).

Nesses quatro anos de que se ocupa o filme, o idealismo e a capacidade de enternecer-se de Guevara não se ressalta tanto nas situações propriamente ditas, como nos Diários de Motocicleta, de Walter Salles.

Aqui e ali, o roteiro cumpre esse papel, como ao mostrar Guevara fragilizado ao sofrer ataques de asma, compassivo no trato com os camponeses e solidário com um novato a ponto alfabetizá-lo nos intervalos das batalhas e caminhadas.

E há também a bela frase dos diários do Che, sobre o amor que move os revolucionários.

Mesmo assim, dependia em muito do ator  passar   ou não para os espectadores a humanidade de um herói que não foi um homem de ferro e, muito menos, o sanguinário em que parte da mídia o quer hoje transformar.

Benício conseguiu, oferecendo-nos um verdadeiro tour de force interpretativo . Seu Che é mesmo um idealista obrigado a endurecer-se para cumprir seu papel histórico, mas que não perde a ternura jamais.

Enfim, o cinema ainda continua nos devendo um filme definitivo sobre a revolução cubana. Mas, tenho a impressão de que este Che é o máximo que podemos esperar de Hollywood.

E vale para estimular o interesse das novas gerações por um dos personagens mais emblemáticos do século passado.

CULTO PERENE

É claro que muitos jovens, antes desse filme, já viam Guevara como o próprio símbolo da revolução.

Enquanto Marx, Lênin, Stalin, Trotsky, Mao e o próprio Fidel só significam algo para os politizados, o Che tem uma força simbólica indiscutivelmente maior -- e muito mais adeptos na faixa da adolescência e mocidade.

Quais os motivos de culto tão perene?

Há quem o atribua, depreciativamente, à semelhança visual entre o Che abatido e o Cristo crucificado, omitindo que as trajetórias também são semelhantes.

Ambos desdenharam os bens materiais e foram solidarizar-se com os pobres, oferecendo-lhes apoio e esperanças. Despertaram a fúria dos poderosos de seu tempo e foram por eles destruídos, terminando sua jornada com muito sofrimento.

Evidentemente, os relatos que chegaram até nós sobre Jesus Cristo não têm áreas nebulosas como aqueles episódios em que Guevara parece haver incorrido em violência excessiva.

Mas, se o Salvador disse que não vinha “trazer a paz, mas a espada”, foi Guevara quem a empunhou. E a guerra nunca inspirou os melhores sentimentos ao ser humano. Pelo contrário, desperta seus piores instintos.

Então, a luta justificada e necessária contra o tirano Fulgêncio Batista pode ter feito aflorar o Robespierre latente naquele homem afável, tão bem retratado nos Diários de Motocicleta.

Mas, contradições são inerentes a todo ser humano. Não existe o herói perfeito e impoluto, salvo em nossa imaginação.

O certo é que Guevara continuou sacrificando tudo por seu ideal de justiça social. Como Garibaldi, foi levar a chama da revolução a outro mundo, a África. E tentou outra vez na Bolívia, onde finalmente o Império o fez executar (mais um paralelo com Cristo!).

Sua vida só foi uma sucessão de fracassos (como já se alegou) para quem reduz a existência à busca do sucesso fácil, descartando valores como a solidariedade, a coerência e a dignidade.

Os que o recriminam, certamente jamais agiriam como Guevara, abrindo mão do poder e honrarias para efetuar desesperadas tentativas de romper o isolamento da revolução cubana.

Pode-se supor que, como Trotsky, ele tenha concluído que a revolução invariavelmente se deforma quando fica restrita a um só país – ainda mais uma nação pobre, atrasada e asfixiada pelo embargo comercial, como Cuba. E fez o que poucos fariam: assumiu a missão de encontrar uma saída para o impasse, nas condições mais desfavoráveis.

No mundo todo, os jovens que também lutavam contra o Império se identificaram com seus sonhos e seu martírio. Não foram uma foto e um pôster que o transformaram em mito, mas sim esse exemplo de dedicação a uma causa justa até o sacrifício extremo.

E, como os corações mais sensíveis e as mentes mais lúcidas não conseguiram vencer o sistema regido pela desigualdade e ganância, Che inspira até hoje os que não aceitam o capitalismo globalizado como o fim da História.

Daí a inutilidade dos frequentes ataques à memória do homem Ernesto Guevara -- como os lançados pela mídia reacionária, a Veja à frente, quando do 40º aniversário da morte do herói.

Jamais atingirão, contudo, o mito Che Pueblo, personificação dos ideais igualitários que os melhores seres humanos vêm acalentando através dos tempos. (texto publicado em 28/03/2009 no blogue Náufrago da Utopia)

segunda-feira, 30 de julho de 2012

UM EXEMPLO QUE SIGO: O DA COMUNA DE PARIS

A primeira experiência de tomada de poder pelos trabalhadores na era capitalista, a heróica Comuna de Paris, ocorreu em 1871, de 18 de março a 28 de maio. Hoje estão sendo comemorados seus 140 anos.

Para relembrar este episódio histórico de extrema relevância para quem luta por uma sociedade livre, justa e solidária, nada melhor do que os textos de Marx e Engels, lançados logo após a sangrenta repressão desencadeada contra os  communards. Fiz uma síntese:
"Na alvorada de 18 de março de 1871, Paris foi despertada por este grito de trovão: "VIVE LA COMMUNE!".

Os proletários da capital -- dizia o Comité Central no seu manifesto de 18 de março -- em meio às fraquezas e das traições das classes governantes, compreenderam que chegara para eles a hora de salvar a situação, assumindo a direção dos assuntos públicos.
O proletariado compreendeu que era seu dever imperioso e seu direito absoluto tomar nas suas mãos o seu próprio destino e assegurar o triunfo, apoderando-se do poder.

Mas a classe operária não se pode contentar com tomar o aparelho de Estado tal como ele é e o pôr a funcionar por sua própria conta.
O poder centralizado do Estado, com os seus órgãos presentes por toda a parte: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura, órgãos moldados segundo um plano de divisão sistemática e hierárquica do trabalho, data da época da monarquia absoluta, em que servia à sociedade burguesa nascente, como arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo.
 Face à ameaça de sublevação do proletariado, a classe proprietária unida utilizou então o poder de Estado, aberta e ostensivamente, como o instrumento de uma guerra nacional do capital contra o trabalho.
Na sua cruzada permanente contra as massas dos trabalhadores, foi forçada não só a investir o executivo de poderes de repressão cada vez maiores, mas também a retirar pouco a pouco à sua própria fortaleza parlamentar, a Assembleia Nacional, todos os meios de defesa contra o executivo.
O poder de Estado, que parecia planar bem acima da sociedade, era todavia, ele próprio, o maior escândalo desta sociedade e, ao mesmo tempo, o foco de todas as corrupções.

O primeiro decreto da Comuna foi, pois, a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo em armas.

A Comuna era composta por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos diversos bairros da cidade. Eram responsáveis e revogáveis a todo o momento. A maioria dos seus membros eram naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna deveria ser não um organismo parlamentar, mas um corpo ativo, ao mesmo tempo executivo e legislativo.
Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada dos seus atributos políticos e transformada num instrumento da Comuna, responsável e revogável a todo o momento.
O mesmo se deu com os outros funcionários de todos os outros ramos da administração. Desde os membros da Comuna até ao fundo da escala, a função pública devia ser assegurada com salários de operários.

Uma vez abolidos o exército permanente e a polícia, instrumentos do poder material do antigo governo, a Comuna teve como objetivo quebrar o instrumento espiritual da opressão, o  poder dos padres; decretou a dissolução e a expropriação de todas as igrejas.
Os padres foram remetidos para o calmo retiro da vida privada, onde viveriam das esmolas dos fiéis, à semelhança dos seus predecessores, os apóstolos.
Todos os estabelecimentos de ensino foram abertos ao povo gratuitamente e, ao mesmo tempo, desembaraçados de toda a ingerência da Igreja e do Estado. Assim, não só a instrução se tornava acessível a todos, como a própria ciência era libertada dos grilhões com que os preconceitos de classe e o poder governamental a tinham acorrentado.
Os funcionários da justiça foram despojados dessa fingida independência que não servira senão para dissimular a sua vil submissão a todos os governos sucessivos, aos quais, um após outro, haviam prestado juramento de fidelidade, para em seguida os violar. Assim como o resto dos funcionários públicos, os magistrados e os juizes deveriam ser eleitos, responsáveis e revogáveis.
Após uma luta heróica de cinco dias, os operários foram esmagados. Fez-se então, entre os prisioneiros sem defesa, um massacre como se não tinha visto desde os dias das guerras civis que prepararam a queda da República romana.
Pela primeira vez, a burguesia mostrava a que louca crueldade vingativa podia chegar quando o proletariado ousa afrontá-la, como classe à parte, com os seus próprios interesses e as suas próprias reivindicações." (texto publicado em 18/03/2011 no blogue Náufrago da Utopia) 

domingo, 29 de julho de 2012

UMA MISSÃO QUE ASSUMO: A DEFESA DA MEMÓRIA DA RESISTÊNCIA E DOS RESISTENTES

Hoje se completam 40 anos da morte do comandante Carlos Lamarca, que estava debilitado e indefeso quando foi covardemente executado pela repressão ditatorial no sertão baiano, em 17 de setembro de 1971, numa típica  vendetta  de gangstêres.

O que há, ainda, para se dizer sobre Lamarca, o personagem brasileiro mais próximo de Che Guevara, por história de vida e pela forma como encontrou a morte?

Foi, acima de tudo, um homem que não se conformou com as injustiças do seu tempo e considerou ter o dever pessoal de lutar contra elas, arriscando tudo e pagando um preço altíssimo pela opção que fez.

Teve enormes acertos e também cometeu graves erros, praticamente inevitáveis numa luta travada com tamanha desigualdade de forças e em circunstâncias tão dramáticas.

Mas, nunca impôs a ninguém sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a ser comovente seu zelo com os companheiros -- via-se como responsável pelo destino de cada um dos quadros da Organização e, quando ocorria uma baixa, deixava transparecer pesar comparável ao de quem acaba de perder um ente querido.

Dos seus melhores momentos, dois me sensibilizaram particularmente.

Logo depois do Congresso de Mongaguá (abril/1969), quando a VPR saía de uma temporada de luta interna e de  quedas  em cascata, o caixa estava a zero e a rede de militantes, clandestinos em sua maioria, carecia desesperadamente de dinheiro para manter as respectivas  fachadas -- qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel, poderia atrair atenções indesejáveis.

Mas, o chamado  grupo tático  fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas. 

Então, quando se planejou a expropriação simultânea de dois bancos vizinhos, na zona Leste paulistana, o pessoal experiente que sobrara não bastava para levá-la a cabo.

Eu e os sete companheiros secundaristas que acabáramos de ingressar na Organização fomos todos escalados -- na enésima hora, entretanto, chegou a decisão do Comando,  que me designou para criar e coordenar um setor de Inteligência, então fiquei de fora.

Lamarca, procuradíssimo pelos órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no seu  batismo de fogo. Os outros quatro comandantes tudo fizeram para demovê-lo, em nome da sua importância para a revolução. Em vão. A lealdade para com a  tropa  nele falava mais alto.

Depois de muita discussão, chegou-se a uma solução de compromisso: ele não entraria nas agências, mas ficaria observando à distância, pronto para intervir caso houvesse necessidade.

Houve: um guarda de trânsito, alertado por transeunte, postou-se na porta de um dos bancos, arma na mão, pronto para atingir o primeiro que saísse.

Lamarca, que tomava café num bar a 40 metros de distância, só teve tempo de apanhar seu .38 cano longo de competição, mirar e desferir um tiro dificílimo -- tão prodigioso que, no mesmo dia, a ditadura já percebeu quem fora o autor. Só um atirador de elite seria capaz de acertar.

Segundo o Darcy Rodrigues, foi a vida dele que Lamarca salvou. O próprio, contudo, contou-nos que seria um dos novatos o primeiro alvejado.

Como resultado, a repressão teve pretexto para fazer de Lamarca o  inimigo público nº 1 -- e, claro, o fez. A imagem dele foi difundida à exaustão, obrigando-o a redobrar cuidados e até a submeter-se a uma cirurgia plástica.

Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.

Dá para qualquer um imaginar a indignação resultante -- afinal, as (dantescas) circunstâncias reais da morte do  Bacuri  ficaram conhecidas na Organização.

Mesmo assim Lamarca não arredou pé, usando até o limite sua autoridade para evitar que a VPR desse aos inimigos o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem Aldo Moro. O episódio foi tão traumático que ele acabou deixando a VPR.

E, no MR-8, novamente divergiu da maioria dos companheiros -- quanto à sua salvação.

Pressionaram-no muito para que saísse do Brasil, preservando-se para etapas posteriores da luta, pois em 1971 nada mais havia a se fazer. Aquilo virara um matadouro.

Conhecendo-o como conheci, tenho a certeza absoluta de que não perseverou por acreditar numa reviravolta milagrosa. Em termos militares, suas análises eram as mais realistas e acuradas. Nunca iludia a si próprio.

O motivo certamente foi a incapacidade de conciliar a idéia de  fuga  com todos os horrores já ocorridos, a morte e os terríveis sofrimentos infligidos a tantos seres humanos idealistas e valorosos. Fez questão de compartilhar até o fim o destino dos companheiros, honrando a promessa, tantas vezes repetida, de vencer ou morrer.

Doeu -- e como! -- vermos os militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais selvagem e repulsiva.

Mas, ele havia conquistado plenamente o direito de desconsiderar fatores políticos e decidir apenas como homem se preferia viver ou morrer.

Merece, como poucos, nosso respeito e admiração. (texto publicado em 17/09/2011 no blogue Náufrago da Utopia)

sábado, 28 de julho de 2012

UMA MISSÃO QUE ASSUMO: O EXERCÍCIO DO PENSAMENTO CRÍTICO

"Na regra, é preciso descobrir o abuso.
E sempre que o abuso for encontrado,
é preciso encontrar o remédio.
Vocês, aprendam a ver, 
ao invés de olhar bobamente"
(Brecht,  A exceção e a regra)

Bur(r)ocratas governamentais, expertos espertinhos, doutos economistas, analistas econômicos e outros papagaios do capitalismo fazem o maior estardalhaço: o Produto Interno Brasileiro parou de crescer! No último trimestre, repetiu o patamar de julho/setembro de 2010! Deus nos acuda!!!

Mas, há matéria-prima e capacidade instalada para se produzir mais? Há.

Há recursos humanos para se produzir mais? Há.

Há brasileiros necessitados de que se produza mais, para levarem existência digna ao invés de vegetarem na penúria? Há.

Então, qual é o problema?

Apenas o de que, para os senhores do mundo, não está sendo lucrativo produzir mais nas atuais circunstâncias. 

Ou seja: inexiste obstáculo real, tudo se resume a mais uma crise artificial.

O que fazer, então?

A primeira possibilidade é a única que os papagaios do capitalismo contemplam: arrocharem-se povos e nações para que volte a ser lucrativo produzir mais. Que morram os homens para que vivam os bancos!

A segunda só entra nas cogitações de quem consegue enxergar um pouco mais longe: os homens organizarem-se solidariamente para um melhor aproveitamento da matéria-prima, da capacidade instalada e dos recursos humanos.

Isso tudo poderia estar servindo para satisfazer as necessidades da maioria.

Está servindo para proporcionar privilégios aberrantes e luxos ultrajantes a uma pequena minoria, à custa da miséria de uns e da vida mal vivida de outros (trabalham e estressam-se mais do que deveriam, realizam-se menos do que poderiam).

Qualquer dia aprenderemos a não levar a sério os papagaios do capitalismo. São os  delfins  da desumanidade.

E, o mais importante: aprenderemos que não precisamos do capitalismo e passaríamos muito melhor sem ele. (texto publicado em 7/12/2011 no blogue Náufrago da Utopia)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

UM IDEAL QUE ME INSPIRA: A SALVAÇÃO DA HUMANIDADE

Não sabemos quais serão a amplitude e as exatas consequências do aquecimento global que já produzimos.

Mas, tudo indica que elas se farão sentir intensamente nas próximas décadas, sob a  forma de tempestades, furacões, tufões, tsunamis, erupções, degelo, inundações, maremotos, terremotos,  desertificação, fome, sede, pestes, penúria.

E, desde Fukushima, sabemos que tais ocorrências poderão  servir como estopim para catástrofes nucleares.

Pior: até hoje não deixamos de agravar a situação. Então, por mais que tergiversem os defensores do primado do lucro sobre o meio ambiente, é impossível afirmarmos neste instante que a espécie humana continuará existindo por muito tempo. Que haverá um século 22.

E não são só as alterações climáticas que se constituem em gravíssima ameaça para os que virão depois de nós

Assim ficaram as crianças de Chernobyl
O diretor-executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Achim Steiner, alerta:
"Estamos destruindo as fundações que sustentam a vida neste planeta. (...) Toda a vida na Terra existe graças aos benefícios da biodiversidade, na forma de terra fértil e água e ar limpos. Mas estamos agora próximos de perder o controle, se não fizemos grandes esforços para conservar a biodiversidade”.
Em mais um encontro mundial que não gerará respostas à altura do desafio enfrentado, o ministro do Meio Ambiente do Japão, Ryo Matsumoto, reforçou a advertência: a perda da biodiversidade poderá chegar a um ponto irreversível se não for freada em tempo.

Temo que a humanidade só se mobilize para tentar garantir sua sobrevivência quando o risco se tornar gritante. E aí poderá ser tarde demais.

Mas, pelo menos para os revolucionários, a ficha já deveria ter caído há muito tempo: a lógica e a dinâmica capitalistas são excludentes em relação às medidas que poderão salvar a humanidade e diminuir as perdas que inevitavelmente vão ocorrer durante a maior crise por ela já enfrentada.

A superação do capitalismo por outra forma de organização econômica, política e social, baseada na solidariedade e na cooperação dos homens para o bem comum, assume caráter urgente e dramático neste início do século 21.

Sem isto, mesmo que sobre alguém para contar a história, o frenesi da sobrevivência colocará uns contra outros, entregues à cegueira egoista do salve-se quem puder, e muitos serão sacrificados sem necessidade por conta dos que estarão se preservando em demasia.

Hoje o 1º mundo já consente, indiferente, que a fome e a miséria ceifem enormes contingentes humanos dos países periféricos. Como reagirá em circunstâncias mais críticas?

Alguém acredita que, sob o capitalismo, os países mais prósperos socorrerão as nações devastadas do 3º mundo?

Ou conservarão para si tudo que lhes aumentar a chance de salvação?

Neles os imigrantes já não são perseguidos e discriminados em razão dos empregos que  roubam  dos trabalhadores nativos?

O que virá depois? O extermínio dos inferiores e dos fracos, por parte dos superiores e dos fortes?

Enfim, por mais difícil que seja, cabe aos melhores seres humanos a tarefa de tentarmos unir a humanidade para o enfrentamento racional e solidário das graves crises que se avizinham.

A contagem regressiva está em curso. (texto publicado em 18/10/2010 no blogue Náufrago da Utopia)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O HORROR, O HORROR! (SÃO OS DISPARATES PROPOSTOS PELO RUSSOMANNO)

Jânio Quadros e sua vassoura  para varrer os corruptos...
Candidatos folclóricos sempre existiram aos montes no Brasil.

Alguns deles foram longe, como Jânio Quadros, o professor que, para compor uma imagem mais  popular, comparecia aos comícios com paletós escuros, salpicados de talco. Acreditava que os eleitores se identificariam mais com ele caso acreditassem que tinha caspas(!).

Paletó por paletó, eu prefiro o marketing do argentino Perón, que arrancava o dito cujo no ponto culminante dos discursos, para atrair a simpatia dos pobres. É que os ricos e os homens de classe média, usuários de paletós, referiam-se pejorativamente aos trabalhadores e lúmpens como  descamisados. Perón usou tal limão para fazer uma limonada.

Voltando aos demagogos de cá, o radialista Pedro Geraldo Costa fez campanha para prefeito de São Paulo em 1965 explorando o mote  Pedro da pedra, literalmente: levava consigo um paralelepípedo enorme, ao apresentar-se na TV...

Afinal, seu nome era Enéas...
Já o médico cardiologista Enéas Carneiro chamou a atenção com sua fala atropelada para aproveitar o pouquíssimo tempo de que dispunha no horário eleitoral, culminando sempre no bordão  meu nome é Enéas!  

Depois de se promover suficientemente em três eleições presidenciais consecutivas e numa para prefeito, elegeu-se deputado federal em 2002 com 1,57 milhão de votos, levando a reboque cinco outras nulidades para a Câmara.

Os amadores que fazem palhaçadas eleitoreiras puderam em 2010 admirar a perícia de um profissional do ofício: Tiririca, o segundo deputado federal mais votado da história do Brasil, atrás apenas... do Enéas.

Na mesma eleição, o vice do José Serra era dado não só às pregações ultradireitistas como também à apresentação de projetos asnáticos. Seu currículo incluía, p. ex.:
  • discurso na Câmara Federal pedindo a proibição de coxinhas e pirulitos em cantinas escolares;
  • proposição na Câmara Municipal carioca de projeto de lei no sentido de que fossem multados os cidadãos que dessem esmola a pedintes; e
  • tentativa de proibir o comércio ambulante nas ruas do Rio, o que eliminaria da paisagem carioca os tradicionais vendedores de mate e biscoito de polvilho.
...ou Prof. Bactério (personagem das HQ's
espanholas Mortadelo & Salaminho)?

O mais novo exemplar dessa fauna é o candidato a prefeito pelo PRB, Celso Russomanno, que já foi apadrinhado pelo Paulo Maluf e hoje tem como  godfather  o Edir Macedo, da Igreja Universal.

Eis o que a Folha de S. Paulo informa sobre ele na edição desta 5ª feira, 26:
"Uma de suas propostas garantiria a todos os congressistas portar arma para autoproteção quando estivessem sozinhos e 'desprotegidos'.

A justificativa é que, em algumas situações, como em CPIs, alguns parlamentares se colocam em confronto 'com bandidos da mais alta periculosidade'.

Em 2010, a Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições doou R$ 100 mil a sua campanha ao governo paulista, de R$ 1,7 milhão arrecadado. Ele negou lobby em favor do setor e disse achar que a doação se deve ao fato de ser um 'especialista em segurança'. 

O candidato também apresentou projeto que aumenta em um terço a pena de quem caluniar, injuriar ou difamar congressistas, vice-presidente e ministros do Supremo Tribunal Federal.

Segundo o ex-deputado, o aumento da pena fará com que 'as pessoas pensem duas vezes antes de praticar inverdades a respeito' de quem exerce cargo público.
Agora quem aperta o botão é o Edir Macedo
Russomanno também tentou alterar a legislação para garantir a distribuição de hormônios a presos por crimes sexuais, condenados ou não, que inibam o desejo sexual.
O ex-deputado sugeriu ainda a troca da denominação estupro para 'assalto sexual', o que constrangeria menos a vítima no momento de relatar o crime à polícia.
Nenhum desses projetos foi aprovado"
Como diria Joseph Conrad: "O horror, o horror!". Estamos realmente no  coração das trevas...

Parem o mundo que eu quero descer.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

SERRA ESCORREGA DE NOVO. E TOMBA SOBRE SEU PASSADO

José Serra perdeu o equilíbrio de novo.

Fez triste figura mais uma vez.

Desonrou novamente os ideais de outrora.

Embora tenha terceirizado o ataque jurídico e verbal contra o blogue Conversa Afiada  (do Paulo Henrique Amorim) e o site Luís Nassif OnLine, as responsabilidades política e moral são dele, Serra. Só dele. Pessoais e intransferíveis.

Pois foi em benefício de sua candidatura que o PSDB fez uma representação à Procuradoria Geral Eleitoral, pedindo investigações... com o evidente objetivo de promover intimidações!

E foi para evitar que Serra aparecesse como paladino da imposição da censura na internet, qual um  velho cavalheiro indigno  (1) a clamar pela volta da Dª Solange (2), que o presidente tucano Sérgio Guerra incumbiu-se de tentar justificar o injustificável nos papos com a imprensa.

Assim como era seu vice, Índio da Costa, quem cortejava os eleitores de extrema-direita durante a campanha eleitoral de 2010, poupando o ex-presidente da UNE da  saia justa  de aderir ele próprio à retórica de quem fechou a UNE.

Que moral tem para falar em "atentado à democracia brasileira" o dirigente máximo do partido de Geraldo Alckmin?!

A barbárie no Pinheirinho e a ocupação militar da USP não passam de balões de ensaio golpistas, para aferir a resistência da sociedade brasileira a uma recaída totalitária, a um novo 1964. 

Ou seja, estes episódios sim merecem ser qualificados de atentados à democracia --pois são reais, bem reais, tanto que houve até uma vítima fatal (ver aqui). Não virtuais e supostos.

Pior do que escorregar do skate é vacilar em relação ao próprio passado, perdendo a identidade que o sustentava e esborrachando-se no chão dos oportunistas.
  1. aos patrulheiros do politicamente correto, informo que não se trata de afronta aos idosos, mas sim de alusão irônica ao título de uma peça do Brecht, A velha dama indigna. 
  2. Solange Teixeira Hernandes, a censora-símbolo da ditadura militar.

UMA MISSÃO QUE ASSUMO: A SOLIDARIEDADE AOS INJUSTIÇADOS

Falamos em Caso Dreyfus, por se tratar de uma terrível injustiça e pelo intenso debate que gerou.

Comparamos com o martírio de Sacco e Vanzetti, porque os dois perseguidores togados de Cesare Battisti foram igual e absurdamente tendenciosos, alinhando-se, até o mais ínfimo detalhe, com o pleito italiano.

A execução destes imigrantes anarquistas em 1927 teve, como pretexto, homicídios que as autoridades estadunidenses sabiam terem sido cometidos por criminosos sem envolvimento político; e como verdadeiro motivo, a intimidação dos agrupamentos revolucionários.

Oficialmente inocentados meio século depois, foram, portanto, assassinados por linchadores travestidos de julgadores -- como Battisti, por muito pouco, escapou de ser.

O paralelo mais apropriado, contudo, talvez não seja histórico, e sim literário: é com a via crucis de Joseph K. Com a diferença de que Battisti acabou sendo salvo por uma corrente de bons brasileiros e uma extraordinária estrangeira.

A exemplo do personagem principal de O Processo, Battisti repentinamente se viu em meio a um pesadelo do qual não conseguia acordar, sob acusações despropositadas e sem encontrar nenhuma autoridade que levasse em conta seus protestos e provas de inocência. Mais kafkiano, impossível.

Daí tanto perguntar, no seu livro Minha fuga sem fim, em entrevistas e mensagens: "Por que eu?".

TRADIÇÃO DE FAMÍLIA

Neto, filho e irmão mais novo de comunistas, engajou-se naturalmente na Juventude do PCI e, aos 13 anos, já participava dos protestos estudantis que marcaram o 1968 europeu.

Depois, no cenário radicalizado do pós-1968, o ardor da idade, também naturalmente, o foi conduzindo cada vez mais para a esquerda: do PCI à Lotta Continua, desta à Autonomia Operária, até desembocar no Proletários Armados para o Comunismo, pequena organização regional com cerca de 60 integrantes.

Participou de assaltos para sustentar o movimento -- as  expropriações de capitalistas -- e não nega. Mas, assustado com a escalada de violência desatinada -- cujo ápice foi a execução do sequestrado premiê Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas -- desligou-se em 1978, logo após o primeiro assassinato reivindicado por um núcleo dos PAC, do qual só tomou conhecimento  a posteriori, recebendo-o com indignação.

Já era um mero foragido sem partido quando os PAC vitimaram outras três pessoas, no ano seguinte.

Detido, foi condenado em 1981 pelo que realmente fez (participação em grupo armado, assalto e receptação de armas), mas a uma pena rigorosa demais (12 anos), característica dos  anos de chumbo  na Itália, quando se admitia até a permanência de um suspeito em prisão PREVENTIVA por MAIS DE 10 ANOS!!!

Resgatado em outubro de 1981, por uma operação comandada pelo líder dos PAC, Pietro Mutti, abandonou a Itália, a luta armada e a própria participação política, ocultando-se na França, depois no México, onde iniciou sua carreira literária.

Aceitando a oferta do presidente François Mitterrand -- abrigo permanente para os perseguidos políticos italianos que se comprometessem a não desenvolver atividades revolucionárias em solo francês --, levava existência pacata e laboriosa há 14 anos, quando, em 2004, a Itália o escolheu como alvo.

Tinha sido um personagem secundário e obscuro nos  anos de chumbo, quando cerca de 600 grupos e grupúsculos de ultraesquerda se constituíram na Itália. O fenômeno ganhou maiores proporções porque muitos militantes sinceros de esquerda foram levados ao desespero pela  traição histórica  do PCI, que tornou a revolução inviável num horizonte visível ao mancomunar-se com a reacionária, corrupta e mafiosa Democracia Cristã.

Destes 600, um terço esteve envolvido em ações armadas.

"POR QUE EU?"

Nem os PAC tinham posição de destaque na ultraesquerda, nem Battisti era personagem destacado dos PAC. Foi apenas a válvula de escape de que o  delator premiado  Pietro Mutti e outros  arrependidos, em depoimentos escandalosamente orquestrados, serviram-se para obter reduções de pena: estava a salvo no exterior, então poderiam descarregar sobre ele, sem dano, as próprias culpas.

Num tribunal que só faltou ser presidido por Tomás de Torquemada, Battisti acabou sendo novamente julgado na Itália e condenado à prisão perpétua em 1987.

A sentença se lastreou unicamente no depoimento desses prisioneiros que aspiravam a obter favores da Justiça italiana -- cujas grotescas mentiras se evidenciaram, p. ex., na atribuição da autoria direta de dois homicídios quase simultâneos a Battisti, tendo a acusação de ser reescrita quando se percebeu a impossibilidade material de ele estar de corpo presente em ambas as cidades.

Depois, provou-se de forma cabal que Battisti não só fora representado por advogados hostis (pois defendiam os  arrependidos  cujos interesses conflitavam com os dele), como também falsários (pois forjaram as procurações que os davam como seus patronos).

Battisti escapara das garras da Justiça italiana, então valia tudo contra ele. Mas, ainda, como  vilão  menor.

Passou a ser encarado como um  vilão  maior quando alcançou o sucesso literário. Tinha muito a revelar sobre o  macartismo à italiana  dos anos de chumbo, tantas vezes denunciado pela Anistia Internacional e outros defensores dos direitos humanos.

Foi aí, em 2004, que a Itália direcionou suas baterias contra Battisti, investindo pesado em persuasões e pressões para que a França desonrasse a palavra empenhada por um presidente da República. Tudo isto facilitado pela voga direitista na Europa e pela histeria insuflada  ad nauseam  a partir do atentado contra o WTC.

Ao mesmo tempo que concedia a extradição antes negada, a França, por meio do seu serviço secreto, facilitou a evasão de Battisti. A habitual duplicidade francesa.

VÍTIMA DE DOIS SEQUESTROS. NO BRASIL

E o pesadelo se transferiu para o Brasil, onde o escritor teve a infelicidade de encontrar, no STF, dois inquisidores dispostos a tudo para entregarem o troféu a Silvio Berlusconi.

Preso em março/2007, seu caso deveria ter sido encerrado em janeiro/2009, quando o então ministro da Justiça Tarso Genro lhe concedeu refúgio.

Mas, ao contrário do que estabelecia a Lei do Refúgio, bem como da jurisprudência consolidada em episódios anteriores, o relator Cezar Peluso manteve Battisti sequestrado, na esperança de convencer o STF a revogar (na prática) a Lei e jogar no lixo a jurisprudência.

Apostando numa hipótese coerente com suas convicções pessoais (conservadoras, medievalistas e reacionárias), Peluso manteve encarcerado quem deveria libertar.

Ele e o então presidente Gilmar Mendes atraíram mais três ministros para sua aventura que, em última análise, visava erigir o Supremo em alternativa ao Poder Executivo, esvaziando-o ao assumir suas prerrogativas inerentes. A criminalização dos movimentos sociais também fazia, obviamente, parte do  pacote.

Foram juridicamente aberrantes as duas primeiras votações, em que o STF, por 5x4, derrubou uma decisão legítima do ministro da Justiça e autorizou a extradição de um condenado por delitos políticos, ao arrepio das leis e tradições brasileiras.

Como na nossa ditadura militar, delitos políticos foram falciosamente  metamorfoseados  em crimes comuns -- a despeito da sentença italiana, dezenas de vezes, imputar a Battisti a subversão contra o Estado italiano e enquadrá-lo numa lei instituída exatamente para combater tal subversão!

blitzkrieg  direitista foi detida na terceira votação, quando Peluso e Mendes tentavam  automatizar  a extradição, cassando também uma  prerrogativa do presidente da República, condutor das relações internacionais do Brasil.

Contra este acinte à Constituição insurgiu-se um ministro legalista, Carlos Ayres Britto. Também por 5x4, ficou definido que a decisão final continuava sendo do presidente da República, como sempre foi.

Sabendo que Luiz Inácio Lula da Silva não cederia às afrontosas pressões italianas, o premiê Silvio Berlusconi já se conformava com a derrota em fevereiro de 2010, pedindo apenas que a pílula fosse dourada para não o deixar muito mal com o eleitorado do seu país.

Mesmo assim, quando Lula encerrou de vez o caso, Peluso apostou numa nova tentativa de virada de mesa. Ao invés de libertar Battisti no próprio dia 31/12/2010, que era o que lhe restava fazer segundo o ministro Marco Aurélio de Mello e o grande jurista Dalmo de Abreu Dallari, manteve-o, ainda, sequestrado.

E o sequestro, desta vez, saltou aos olhos e clamou aos céus. Só não viu quem não quis.

Com o STF decidindo, por sonoros 6x3 (só Ellen Gracie embarcou na canoa furada de Peluso e Mendes), que não havia mais motivo nenhum para o processo prosseguir nem para Battisti ser mantido preso, como fica a situação de quem cerceou arbitrariamente sua liberdade por cinco meses e oito dias?

Torno a perguntar: quem julga o presidente da mais alta Corte?

UM IMPERADOR EM PARAFUSO

Além do governo neofascista de Berlusconi, que usou todo o peso de um país do 1º mundo na tentativa de arrancar Battisti do Brasil; da cabeça-de-ponte no Supremo e do previsível engajamento dos reacionários brasileiros na cruzada italiana (vide a arguição da inconstitucionalidade do parecer da Advocacia Geral da União, por parte do DEM), uma menção especial cabe à grande imprensa brasileira em geral e a Mino Carta em particular.


Eles protagonizaram uma das páginas mais vergonhosas de nosso jornalismo em todos os tempos, com uma satanização sem limites, omitindo informações importantes, maximizando insignificâncias, não abrindo espaço para o  outro lado, cerceando o direito de resposta, manipulando, mentindo, pressionando, picareteando. 


Nos momentos mais cruciais do caso, tratavam Battisti como  terrorista, o que nem a discricionária Justiça italiana dos  anos de chumbo  ousara. Tudo fizeram para que um ex-militante inativo há três décadas  fosse confundido com um Bin-Laden da vida.

Quanto a Mino Carta, sem jamais admitir que sua hostilidade a Battisti se devia a ser fanático adepto do PCI e feroz inimigo dos que contestaram o PCI, transformou sua revista num panfleto de péssima qualidade, multiplicando as matérias rancorosas contra Battisti de forma tão obsessiva que acabou sendo rejeitado até pelos leitores do seu blogue. Aí, como o imperador que supõe ser, escafedeu-se do próprio blogue...

Finalmente, se a jornada kafkiana de Battisti chegou a bom termo, isto em muito se deve ao espírito de Justiça e à faina incansável de Fred Vargas, Carlos Lungarzo e Eduardo Suplicy; aos artigos magistrais de Dalmo Dallari; ao abnegado trabalho de divulgação desenvolvido por Rui Martins na fase em que poucos se interessavam pelo assunto; e à dedicação de uma militância jovem e apaixonada, que vestiu a camisa e deu o sangue pela causa.

Seria impossível lembrar e citar todos; nem isto é tão importante quando se luta por ideais. Nossa verdadeira recompensa é saber que ajudamos a impedir que este episódio terminasse como o de Olga Benário e de Sacco e Vanzetti.

Por mais difícil que se apresente e por mais poderosos que sejam os inimigos enfrentados, nenhuma luta está perdida na véspera. Esta é a lição que fica. (texto publicado em 9/6/2011 no blogue Náufrago da Utopia)

terça-feira, 24 de julho de 2012

JÁ TENHO UM BORDÃO: "VAMOS BOTAR A PM NO MUSEU DA DITADURA!"

De candidatos a vereador espera-se que tenham um pacote de propostas para exibir, contemplando contingentes expressivos de eleitores. Vote em mim e você terá sua creche, ou CEU, ou poste de iluminação, ou...

Se perdem a eleição, as propostas vão pro lixo.

Quando ganham, a possibilidade de cumprir o prometido é, no mínimo, remota. Depende das disponibilidades orçamentárias, da influência que seu partido detenha  y otras cositas más...

Respondendo a um questionário da Folha de S. Paulo, fui obrigado a entrar nessa rinha inglória. Escrevi que: 
  • eu me esforçarei ao máximo para forçar a cobrança da imensa dívida que grandes capitalistas têm com o município (aqueles calotes que, se depender do empenho dos tucanos, virarão o século); e 
  • apresentarei um projeto proibindo homenagens a pessoas envolvidas com ditaduras e/ou atos hediondos, em tudo que depender da administração paulistana.
É óbvio que poderia fazer melhor do que isto, se pretendesse cortejar votos clientelistas. Não é o caso. Ao invés de prometer mundos e fundos para me eleger, ofereço a garantia de que defenderei os interesses dos explorados e dos injustiçados, esforçando-me, ao mesmo tempo, para ser uma pedra bem incômoda no sapato dos poderosos.

Se for suficiente, ótimo. Caso contrário, azar meu. O certo é que vocês não me verão escorregando de skates durante a campanha.

Mas, lendo o artigo do filósofo Vladimir Safatle, Pela extinção da PM, dei-me conta de que, quando a PM paulista executou cidadãos honestos na semana passada, a ficha não me caiu e deixei de relacionar as matanças à recente recomendação da ONU, no sentido de que o Brasil elimine mais este entulho autoritário. 

Lapso imperdoável, pois eu havia sido o primeiro a concordar entusiasticamente com tal proposta, conforme se pode constatar no meu artigo de 04/06/2012, Da ONU para o Brasil: extingam as PM's!!! (ver aqui).

Então eu tenho, sim, uma bandeira impactante para levantar, pouco importando que se trate de um assunto de competência do Estado e não do município. Vale até o dia em que for concretizada e eu a defenderei em qualquer circunstância e cargo que ocupe.

Vou ser o avesso do Paulo Maluf: enquanto ele tinha como bordão  vou botar a Rota na rua!, o meu é vamos botar a PM no museu da ditadura! Quiçá na mesma prateleira do Doi-Codi...

Eis o artigo do Safatle, que, claro, aprovo e recomendo:
 "No final do mês de maio, o Conselho de Direitos Humanos da ONU sugeriu a pura e simples extinção da Polícia Militar no Brasil. Para vários membros do conselho (como Dinamarca, Espanha e Coreia do Sul), estava claro que a própria existência de uma polícia militar era uma aberração só explicável pela dificuldade crônica do Brasil de livrar-se das amarras institucionais produzidas pela ditadura.
No resto do mundo, uma polícia militar é, normalmente, a corporação que exerce a função de polícia no interior das Forças Armadas. Nesse sentido, seu espaço de ação costuma restringir-se às instalações militares, aos prédios públicos e aos seus membros.

Apenas em situações de guerra e exceção, a Polícia Militar pode ampliar o escopo de sua atuação para fora dos quartéis e da segurança de prédios públicos.

No Brasil, principalmente depois da ditadura militar, a Polícia Militar paulatinamente consolidou sua posição de responsável pela completa extensão do policiamento urbano. Com isso, as portas estavam abertas para impor, à política de segurança interna, uma lógica militar.

Assim, quando a sociedade acorda periodicamente e se descobre vítima de violência da polícia em ações de mediação de conflitos sociais (como em Pinheirinho, na cracolândia ou na USP) e em ações triviais de policiamento, de nada adianta pedir melhor 'formação' da Polícia Militar.

Dentro da lógica militar, as ações são plenamente justificadas. O único detalhe é que a população não equivale a um inimigo externo.
Isto talvez explique por que, segundo pesquisa divulgada pelo Ipea, 62% dos entrevistados afirmaram não confiar ou confiar pouco na Polícia Militar. Da mesma forma, 51,5% dos entrevistados afirmaram que as abordagens de PMs são desrespeitosas e inadequadas.
Como se não bastasse, essa Folha mostrou no domingo que, em cinco anos, a Polícia Militar de São Paulo matou nove vezes mais do que toda a polícia norte-americana ('PM de SP mata mais que a polícia dos EUA', 'Cotidiano').
Ou seja, temos uma polícia que mata de maneira assustadora, que age de maneira truculenta e, mesmo assim (ou melhor, por isso mesmo), não é capaz de dar sensação de segurança à maioria da população.

É fato que há aqueles que não querem ouvir falar de extinção da PM por acreditar que a insegurança social pode ser diminuída com manifestações teatrais de força.

São pessoas que não se sentem tocadas com o fato de nossa polícia torturar mais do que se torturava na ditadura militar. Tais pessoas continuarão a aplaudir todas as vezes em que a polícia brandir histericamente seu porrete. Até o dia em que o porrete acertar seus filhos".

segunda-feira, 23 de julho de 2012

A MÚSICA DO DIA E O PALHAÇO DA VEZ

PALHAÇO
 (Benedito Lacerda)

Eu assisti de camarote
o teu fracasso,
palhaço, palhaço.
Quem gargalha demais,
sem pensar no que faz,
quase nunca termina em paz.

No livro de registro desta vida,
numa página perdida o teu nome há de ficar.
Registram-se os fracassos, esquecem-se os palhaços
e o mundo continua a gargalhar.


Obs. - Mal eu acabara de criticar as pedaladas eleitoreiras do José Serra, observando que se tratava também de uma tentativa de dar-se ares de juvenilidade apesar dos seus 70 anos mal vividos, eis que o destino o puniu, fazendo-o escorregar do skate no qual nunca deveria estar tentando se equilibrar. Bem feito!

UM IDEAL QUE ME INSPIRA: A REVOLUÇÃO MUNDIAL DO MARX

Um espectro ronda a esquerda: o  espectro da revolução.

Pelo mundo inteiro pipocam manifestações contra a ganância, essência do capitalismo -- com uma força e abrangência que não se viam desde as primaveras de 1968.

E, quando as rodas da História começam de novo a girar, após quatro décadas de marasmo e consumismo, a esquerda  moldada na fase do refluxo revolucionário  não consegue acompanhar os ventos de mudança.

Continua defendendo com unhas e dentes os regimes híbridos que sustentaram nossa fé nos anos difíceis, sem acordar para a realidade de que estamos ingressando numa época na qual podemos novamente sonhar com -- e devemos novamente lutar por -- uma revolução nos moldes clássicos.

Ou seja, internacional e desencadeada de baixo para cima, tendo os explorados como sujeito e não como objeto. 

Chega de abençoarmos aquelas ditaduras instauradas por quarteladas que, qual fazendas modelos,  cuidavam bem do seu gado enquanto não tugisse nem mugisse! Não são e nunca foram o que, marxistas e anarquistas, tínhamos como meta, mas, aos olhos dos cidadãos despolitizados e manipulados pelas indústria cultural, acabam se identificando conosco, como se fôssemos totalitários e carniceiros. 

O panorama que hoje se vislumbra é muito mais grandioso. Como Vandré cantou em 1968, temos de novo a certeza na frente e a História na mão.

BECO  SEM SAÍDA

Já faz quase um século que os movimentos revolucionários desviaram por atalho que acabou conduzindo a um beco sem saída.

O desvio foi decidido às vésperas da revolução soviética, quando o Partido Bolchevique discutiu dramaticamente se valia a pena tomar-se o poder num país atrasado, contrariando duas premissas marxistas: a da revolução internacional e a da construção do socialismo a partir das nações economicamente mais pujantes (e não o contrário!).

Foi uma avaliação arguta ou um dom profético que levou Marx a pregar uma tomada de poder em escala global?  A História comprovaria ser o capitalismo tão poderoso que, se nações isoladas tentam edificar uma sociedade mais justa, ou são por ele esmagadas, ou sobrevivem ao preço da descaracterização de suas propostas originais..

"...embora a Rússia não estivesse pronta para o
socialismo, serviria como estopim da revolução mundial..."
Em 1917, prevaleceu o argumento de que, embora a Rússia não estivesse pronta para o socialismo, serviria como estopim da revolução mundial, começando pela revolução alemã, prevista para questão de meses. Então, o atraso econômico russo seria contrabalançado pela prosperidade alemã; juntas, efetuariam uma transição mais suave para o socialismo.

Deu tudo errado. A reação venceu na Alemanha, a nova república soviética só pôde depender de si mesma e, após rechaçar bravamente as tropas estrangeiras que tentaram restabelecer o regime antigo, viu-se obrigada a erguer uma economia moderna a partir do nada.

Quando o ardor revolucionário das massas arrefeceu -- não dura indefinidamente, em meio à penúria --, a mobilização de esforços para superação do atraso econômico acabou se dando por meio da ditadura e do culto à personalidade.

A Alemanha nazista era o espantalho que impunha urgência: mais dia, menos dia haveria o grande confronto e a URSS precisava estar preparada. O stalinismo foi engendrado em circunstâncias dramáticas.

A república soviética acabou salvando o mundo do nazismo -- foi ela que quebrou as pernas de Hitler, sem dúvida! --, mas perdeu sua alma: já não eram os trabalhadores que estavam no poder, mas sim uma odiosa  nomenklatura.

Concretizara-se a profecia sinistra de Trotsky: primeiro, o partido substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o partido; finalmente, um tirano substitui o Comitê Central.

Com uma ou outra nuance, acabou sendo este o destino das revoluções que tentaram edificar o  socialismo num só país: foram  isoladas, tornaram-se autoritárias e não tiveram pujança econômica para competir com o mundo capitalista, acabando por sucumbir ou por se tornarem modelos híbridos (como o chinês, que mescla capitalismo de estado na economia com despotismo stalinista na política).

E AGORA, JOSÉ?

Agora, só nos resta voltarmos ao princípio de tudo: Marx.

Reassumirmos a tarefa de engendrar  a onda revolucionária que varrerá o mundo.

Esquecermos a heresia de solapar o capitalismo a partir dos seus elos mais fracos, pois o velho barbudo estava certíssimo: as nações economicamente mais poderosas é que determinam a direção para a qual as demais seguirão, e não o contrário.

Isto, claro, se tivermos como meta a condução da humanidade a um estágio superior de civilização. Pois o cerco das nações prósperas pelos rústicos e atrasados já vingou uma vez, quando Roma sucumbiu aos bárbaros... e o resultado foi um milênio de trevas.

Se, pelo contrário, quisermos cumprir as promessas originais do marxismo, as condições hoje são bem propícias do que um século atrás:
"...crises tão agudas que só unidos e 
solidários conseguiremos sobreviver..."
  • o capitalismo já cumpriu seu papel histórico no desenvolvimento das forças produtivas e está tendo sobrevida cada vez mais parasitária, perniciosa e destrutiva -- tanto que mantém a parcela pobre da humanidade sob o jugo da necessidade quando já estão criadas todas as premissas para o  reino da liberdade, e o 1º mundo sob o jugo da competitividade obsessiva, estressante e neurótica, quando já estão criadas todas as premissas para uma existência fraternal, harmoniosa e criativa;
  • os meios de comunicação que ele desenvolveu, como a internet, facilitam a disseminação e coordenação dos movimentos revolucionários em escala mundial, de forma que um novo 1968, p. ex., hoje seria muito mais abrangente (está longe de ser utópica, agora, a possibilidade de uma onda revolucionária varrer o mundo);
  • a necessidade de adotarmos como prioridade máxima a colaboração dos homens para promover o bem comum, em lugar da ganância e da busca de diferenciação e privilégio, será dramatizada pelas consequências das alterações climáticas e da má gestão dos recursos imprescindíveis à vida humana, gerando crises tão agudas que só unidos e solidários conseguiremos sobreviver.
Nem preciso dizer que a forte componente libertária original do marxismo tem de ser reassumida, pois os melhores seres humanos, aqueles dos quais precisamos, jamais nos acompanharão de outra forma (esta é uma das conclusões mais óbvias a serem tiradas dos acontecimentos das últimas décadas).

A bandeira da liberdade deve ser empunhada de novo pelos que realmente a podem concretizar, não pelos que só têm a oferecer um cativeiro com as grades introjetadas, pois a indústria cultural as martela dia e noite na cabeça dos  videotas.

É este o edifício sólido que podemos começar a construir com os tijolos do muro de Berlim e tantos outros muros tombados.

E é esta a postura com que poderemos nos afirmar como o que devemos e temos a obrigação de ser: a vanguarda dos  indignados  de todos os quadrantes. (texto publicado em 31/10/2011 no blogue Náufrago da Utopia)

domingo, 22 de julho de 2012

UM IDEAL QUE ME INSPIRA: A "SOCIEDADE ALTERNATIVA" DO RAULZITO

No início dos anos 80, quando trabalhava em revistas de música, tive uma breve amizade com o Raul Seixas.

O que nos aproximou foi termos ambos 1968 como referencial maior de nossas existências. 

Músicas tipo "Metamorfose Ambulante", “Tente Outra Vez”, "Cachorro Urubu" e "Sociedade Alternativa" lavavam minha alma, num momento em que a velha esquerda rabugenta se reconstruía, passando como um rolo compressor sobre os sonhos da  geração das flores.

De papos sóbrios e etílicos que tive então com o Raulzito, posso dizer que o lance da sociedade alternativa era, basicamente, o de agruparmos as pessoas com boa cabeça em comunidades que estivessem, ao mesmo tempo, dentro do sistema (fisicamente) e fora dele (espiritualmente).

Essas comunidades existiram no Brasil, de 1968 até meados da década seguinte. Nelas praticávamos um estilo solidário de vida, buscando reconciliar trabalho e prazer. Procurávamos ter e compartilhar o necessário, evitando a ganância e o luxo.

Acreditávamos que um homem novo só afloraria com uma prática de vida nova; quem quisesse mudar o mundo dentro das estruturas podres, acabaria sendo, isto sim, mudado pelo mundo.

Então, em vez de conquistar o governo para tomar o poder e tentar implantar uma sociedade mais justa de cima para baixo, nós queríamos deslocar o eixo para o sentido horizontal: acreditávamos em ir praticando uma vida não-competitiva em comunidades que se entrelaçariam e cresceriam aos poucos, até engolirem a sociedade antiga.

As teses e posturas da chamada Nova Esquerda dos anos 60 continuam sendo uma das melhores tentativas que podemos fazer para sairmos deste  inferno pamonha  que o capitalismo globalizado engendrou. Daí o empenho dos conservadores de direita e de esquerda (eles existem, sim!) em relegá-las ao esquecimento. 1968 ainda é tabu.

O NÉO-ANARQUISMO 

Se, como todo mundo diz, a Sociedade Alternativa proposta pelo Raulzito tinha muito a ver com os livros do bruxo Aleister Crowley (que ele e o Paulo Coelho andaram traduzindo do original), também se inspirava nas barricadas parisienses, nas comunidades hippies e na contracultura, o que poucos apontam.

Ele e eu conversamos muito sobre isso; éramos ambos saudosos dos tempos em que tentávamos nos tornar homens novos na convivência solidária com os irmãos de fé, em nossos territórios livres.

A referência ao maio/1968 francês é óbvia, por exemplo, na segunda estrofe de "Cachorro Urubu": "E todo jornal que eu leio/ me diz que a gente já era,/ que já não é mais primavera./ Oh, baby, a gente ainda nem começou."

Os conservadores sempre tentaram reduzir a obra do Raulzito a uma provocação artística, sem maiores conseqüências políticas e sociais. Mas, ele não era meramente um gênio de comportamento anárquico, como tentam retratá-lo, folclorizando-o para torná-lo inofensivo.

Era, isto sim, um homem sintonizado com o néo-anarquismo que esteve em evidência na Europa e EUA na virada dos anos 60 para os 70. E só não dizia isso de forma mais explícita em suas canções porque o Brasil era um estado policial, submetido a uma censura rígida, embora burra.

Este não era, claro, o único aspecto de sua multifacetada personalidade – talvez nem o principal. Mas é o que mais tem sido omitido pelos que querem fazer dele apenas um monumento do passado, não um guia para a ação no hoje e agora.

LIKE A ROLLING STONE  

Eu vivi na estrada e em comunidade alternativa, em 1971/72. Foi uma experiência riquíssima, num momento em que eu precisava extravasar as emoções represadas no cárcere e me reconstruir, já que o sonho de uma sociedade de liberdade e justiça social ficara adiado por décadas e eu, esperançoso como qualquer adolescente, não me preparara psicologicamente para suportar a sociedade unidimensional que a contra-revolução erigiu.

Atrapalhava muito, naquela terrível Era Médici, a tensão entre a liberdade que queríamos vivenciar em recinto fechado e o terror e o medo que grassavam lá fora.

Vivíamos acuados, os cidadãos comuns nos olhavam com receio ou rancor por causa de nossas cabeleiras e roupas extravagantes. Enquanto isso, a economia deslanchava e alguns sentiam-se tentados a ir buscar também o seu quinhão do  milagre brasileiro.

Hoje, quem tem olhos para ver já pode aquilatar o que é a sociedade de consumo e a posição de país periférico na economia globalizada: parafraseando Conrad, "o horror, o horror!".

Acostumado aos tempos em que se trabalhava para viver, eu não consigo aceitar que atualmente as pessoas vivam para trabalhar, mobilizadas por objetivos profissionais umas 14 horas por dia (expediente, horas extras que dificilmente são pagas, cursos e mais cursos de atualização profissional, etc.).

E tudo isso para quê? Para poderem comprar um monte de objetos supérfluos e quase nunca encontrarem relacionamentos gratificantes no dia-a-dia, pois já não sabem mais interagir – querem apenas usar umas às outras.

Então, fico pensando que, em lugar de levarmos vida de cão dentro do sistema, poderíamos todos estar nos agrupando em casarões da cidade e sítios no campo, criando pequenos negócios para subsistência, plantando, levando uma vida simples mas solidária. Reaprendendo a ter no outro um irmão e não um competidor.

Com as facilidades de comunicação atuais (que fizeram muita falta há quatro décadas), essas comunidades urbanas e rurais se entrelaçariam, ajudando umas às outras, trocando o que produzissem, prescindindo dos bancos, escapando dos impostos e das formas de controle do Estado. Em suma, praticando criativamente, adaptados aos dias de hoje, os ensinamentos de Thoreau em A Desobediência Civil.

Seria um ponto de partida. E, conforme os territórios livres fossem crescendo, poderiam até virar algo mais sério – uma alternativa para toda a sociedade.

COMO FAZER

Nas comunidades de 1968/72, o que se fazia era reviver a velha democracia grega: reuniões para se decidir os assuntos mais importantes, para nos conhecermos melhor, para sonharmos e brincarmos.

Podia começar num debate acirrado e terminar com todo mundo nu dançando ao som de "Let the sun shine in" (com inocência, pois não éramos dados ao sexo grupal).

Enfim, tentávamos existir plenamente como grupo, esforçando-nos para superar o egoísmo e a possessividade.

Havia problemas, claro. Emprestávamos ao outro o que ele estava precisando mais, numa boa; só que, às vezes, descobríamos na enésima hora que alguém tinha levado sem pedir aquilo que a gente ia usar. Dava discussão e os limites tinham de ser depois definidos na reunião coletiva da nossa comuna.

Também não era fácil administrarmos o jogo das paixões. Minha amizade com um ótimo companheiro andou estremecida por uns tempos quando a namorada rompeu com ele e iniciou uma relação comigo. Por mais que quiséssemos nos colocar acima de sentimentos menores como o ciúme, eles existiam e nos machucavam.

O importante, entretanto, era essa vontade que todos tínhamos de superar as limitações de nossa educação pequeno-burguesa e viver de forma generosa e solidária.

Quando alguém tinha um problema, era de todos. Quando alguém estava triste, logo um companheiro ia perguntar o motivo. Tudo que podíamos fazer pelo outro, fazíamos.

Onde erramos? Duas vaciladas fatais implodiram nossa comuna. Uma foi deixarmos a droga correr solta – LSD e maconha, principalmente, pois o propósito era abrirmos as  portas da percepção, no dizer de Huxley. Isto, entretanto, trouxe à tona facetas da personalidade reprimida que o grupo não conseguia administrar. Acabaram ocorrendo conflitos, separações.

A outra foi recebermos de braços abertos todos os pirados que apareciam, vendo um amigo em cada pessoa que parecesse estar fora do sistema. Como sempre, apareceram os aproveitadores, os parasitas, os pequenos marginais. E a polícia veio atrás.

Mas, as experiências que vivenciamos foram tão intensas que aquele ano valeu por uns cinco. Foi com imenso pesar que vimos aqueles laços se romperem, sendo obrigados a voltar, cada um por si, à luta inglória pela sobrevivência. É uma tortura ser obrigado a correr de novo atrás do ouro de tolo, quando não se tem mais  aquela velha opinião formada sobre tudo...

Com algumas correções de rumo e numa conjuntura menos repressiva, as comunidades ainda poderão ser viabilizadas. Há que se tentar outra vez. Mesmo porque, como disse o Raul, "basta ser sincero e desejar profundo/ você será capaz de sacudir o mundo".

O NOVO DESAFIO 

A tentativa de irmos engendrando uma alternativa ao sistema dentro do próprio sistema tem muito mais a ver agora do que no tempo do Raul, pois os homens precisarão unir-se para enfrentar a crise das alterações climáticas.

Na segunda metade deste século, o planeta será fustigado por terremotos, maremotos, furacões, tufões, tsunamis, inundações, fome e seca. As perdas poderão ser diminuídas se os homens se ajudarem mutuamente, sem o egoísmo e a competitividade capitalistas; caso contrário, até mesmo o fim da espécie humana não estará descartado.

O futuro da humanidade não pode ficar à mercê da ganância, sob pena de interesses mesquinhos acabarem destruindo o planeta.

Os homens têm de encontrar formas de organizar-se para a produção em termos solidários, visando o bem comum e não o lucro. Cooperarem em vez de competirem.

Mas, isso não pode ser imposto por uma burocracia. Chega de ditadura do proletariado, estatização compulsória da economia e outras experiências que tiveram maus resultados!

É uma mudança de cultura que teremos de efetuar voluntariamente, se quisermos legar aos nossos descendentes algo além de uma Terra arrasada.

Teremos de construir algo novo a partir da cooperação voluntária dos cidadãos. Mostrar que o bem comum deve prevalecer sobre os interesses individuais. Convencer os recalcitrantes ou mantê-los fora da nova sociedade que estivermos criando. Mas, fazer o possível e o impossível para evitar que ela também descambe para a coerção e a repressão.

E não serão os podres poderes atuais que vão encabeçar essa luta. A união de que necessitamos deve ser forjada a partir de agora, como uma rede a ser montada pelas pessoas de boa cabeça, independentemente de governos e partidos políticos.

Se o enfrentamento da maior ameaça com que os homens já se depararam não propiciar o surgimento de uma sociedade melhor, nada mais o fará. (atualização de um texto divulgado em out./2006 e publicado em 14/1/2007  no blogue Celso Lungaretti - O Rebate)